terça-feira, 28 de outubro de 2008


Os conflitos do Magreb e da África Ocidental

O fundamentalismo islâmico, por sua vez, fez avanços significativos no norte da África, com atentados no Egito, Líbia, Marrocos e, principalmente, na Argélia. Neste país, desde 1991 a Frente Islâmica de Salvação (FIS) tornou-se um partido influente e, face à sua vitória no primeiro turno das eleições em 1992, o processo foi suspenso e implantada a lei marcial, regida pelos militares. Iniciou-se então uma guerra civil esporádica, com grande número de atentados e massacres de civis. Contudo, é preciso ter em conta que muitos desses atos são cometidos pelas forças governamentais, com o objetivo de atemorizar a população, atribuindo a culpa à FIS e outras organizações fundamentalistas, como constatou uma missão parlamentar da União Européia em 1998. Por outro lado, há evidências de que os EUA mantêm certos contatos com as oposições islâmicas, enquanto a França apóia o regime, o que, muito provavelmente, encontra sentido na disputa pelo petróleo e pela influência estratégica na região entre Washington e Paris. É necessário lembrar que em 1989 foi lançada a iniciativa da União do Magreb Árabe, um processo integrativo entre os países da região, o qual prevê vínculos associativos com a União Européia.
A instabilidade no continente também afetou os Estados do Golfo da Guiné. O mais importante país da região, a Nigéria, vive desde o início dos anos 90 uma turbulência política interna permanente, com a oscilação entre avanços eleitorais da oposição e novos golpes militares. Além disso, as guerras civis alastraram-se pela região: Senegal (região de Casamance), Libéria, Serra Leoa e a longa guerra dos Estados do Sahel (Mali, Niger, Mauritânia e a própria Argélia) contra os nômades tuaregues do deserto. Embora a OUA tenha criado forças de paz para barrar os conflitos da Libéria e Serra Leoa, ainda não conseguiu debelar estes conflitos. Nestes, a fratura principal ocorre entre os nativos do interior e os descendentes ocidentalizados de ex-escravos das Américas, que retornaram à África no século XIX, e habitam o litoral. Acrescente-se a isso que, após uma breve redemocratização, muitos regimes autoritários estão voltando ao poder na África, ou pelo menos antigos ditadores vencem eleições ou reassumem na esteira de conflitos internos, geralmente com apoio popular.

A diplomacia da nova África do Sul

Apesar destes problemas, existem alguns processos positivos que sinalizam o reafirmação da África na cena internacional. É o caso da África Austral, outra região considerada estratégica para a "nova ordem mundial", devido a suas reservas minerais e sua importante posição geopolítica. Tanto aqui como no Oriente Médio, os conflitos regionais conduziam à radicalização social, à instabilidade diplomática e aos excessivos gastos em defesa e segurança, os quais foram consumindo as riquezas locais, obrigando o Ocidente à auxiliá-las economicamente. O Apartheid começou a ser desativado pelo presidente Frederik De Klerk, num tortuoso processo que culminou com a eleição de Mandela à presidência do país em 1994. Este caminho foi difícil, com inúmeros conflitos internos, o que também veio a ocorrer com os processos de paz em Angola e Moçambique, só concluídos após a vitória do Congresso Nacional Africano na África do Sul. Apesar da situação ainda não haver sido resolvida em Angola, a queda de Mobutu no Zaire deixou a UNITA ainda mais isolada.
Embora a situação interna sul-africana seja difícil, especialmente quanto aos problemas sociais que afetam a maioria negra, começa a esboçar-se uma área de integração na África Austral, em torno da nova África do Sul. O processo de paz traz implícita a integração econômica da região, permitindo virtualmente uma maior estabilidade social e diplomática, bem como uma inserção internacional menos onerosa desta área no movimento de globalização econômica em curso. Paralelamente, a nova diplomacia sul-africana abriu possibilidades de mudança na política regional, pois a África do Sul ingressou na OUA e no Movimento dos Não Alinhados, cortou relações com Taiwan e as estabeleceu com a República Popular da China, e tem buscado romper o isolamento estabelecido pelos EUA em relação à Líbia, Nigéria, Sudão e Cuba. Além disso, o estabelecimento em 1993, por iniciativa brasileira, da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, cria possibilidades de cooperação sistemática entre a África Austral e os países do Mercosul, recriando certa margem de manobra internacional.

O genocídio na região dos lagos africanos e o fim do Zaire

Outro processo que representa uma renovação e desentrave da política africana, resultou da guerra civil de mútuo extermínio em Ruanda e Burundi. Este conflito foi mostrado pela mídia como uma decorrência do "tribalismo tradicional", mas na realidade resultou da deformação e reapropriação moderna de determinadas fraturas sociais da região. Os agricultores hutus formam quase 90% da população, enquanto os pastores tutsi, que chegaram mais tarde à região e constituíram uma aristocracia feudal, representam 10%. Durante a ocupação alemã e belga nessas duas colônias, os tutsis foram cooptados como elite no poder. Após a independência, o regime neocolonial de Ruanda passou a ser dominado pelos hutus, e aliou-se incondicionalmente à França e ao Zaire. A hegemonia hutu, marcada por forte corrupção e exclusão estrutural dos adversários, começou a ser questionada no início da década. Refugiados tutsi, exilados há anos em Uganda, organizaram um pequeno exército (a Frente Patriótica Ruandesa - FPR), que penetrou no norte de Ruanda em outubro de 1990, sendo expulsos um mês depois pelo exército. Sentindo-se desgastado e ameaçado internamente, o governo massacrou tutsis em 1991 e 1992, como meio de fomentar uma divisão étnica, com vistas a permanecer no poder.
Apesar da assinatura dos Acordos de Arusha entre o governo e a oposição, a guerra civil reiniciou-se, com os rebeldes consolidando seu controle no norte e massacrando populações hutus. Frente ao impasse reinante no campo de batalha, no verão de 1993 foi estabelecido um governo de coalizão. Mas a paz estabelecida era frágil, e bastou que um hutu vencesse as eleições na vizinha Burundi, para levar os tutsis deste país a reagir. Em Ruanda, então, os extremistas hutus, ligados ao ex-presidente, aproveitaram-se da situação para atacar os tutsis e os hutus moderados. A crise agravou-se com a morte dos presidentes dos dois países, quando foi derrubado sobre Ruanda o avião que os transportava para uma reunião, destinada a resolver a crise. A partir daí a guerra civil acirrou-se, e a FPR conquistou Kigali, a capital de Ruanda. Em 1994 teve início então um gigantesco massacre de hutus, que fez entre 500 e 800 mil mortos, e produziu um êxodo de 4 milhões de refugiados (numa população de 7,8 milhões), a maioria em direção aos países vizinhos, principalmente o fragilizado Zaire, que junto com a França era aliado do antigo governo. Os Estados Unidos imediatamente reconheceram o novo governo da FPR, que era também aliado de Uganda e Tanzânia.
O problema dos refugiados gerou tensões no Zaire, país que já enfrentava graves problemas internos, após malogradas tentativas de democratização. Em 1996 formou-se na região dos lagos, no leste, a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire, uma milícia composta principalmente por tutsis do Zaire. A Aliança era liderada por Laurent Kabila, um negociante de ouro e marfim, associado a meios empresariais norte-americanos, e que fora partidário de Lumumba no início dos anos 60. Em menos de quatro meses, os rebeldes avançaram pelas províncias ricas do país até a capital, Kinshasa, sendo absorvidos por um vácuo, praticamente sem encontrar resistência.
Obviamente o Zaire de Mobutu era um gigante de pés de barro em desagregação, mas isto não era um fenômeno recente. Ele teria sobrevivido mais tempo, não fossem certos fatores externos. Os conflitos da região dos lagos instauraram uma nova correlação de forças na região, e as forças de Kabila puderam receber apoio material e político dos governos de Ruanda e Uganda, e quando atingiram o sul do Zaire, também de Angola (que aproveitou a oportunidade para vingar-se de Mobutu e enfraquecer a UNITA). Forças regulares, unidades blindadas e aéreas destes países apoiaram diretamente os rebeldes nas operações militares.
Durante o avanço rebelde, enquanto parte da mídia destacava o passado "marxista-leninista" de Kabila, Mobutu esperava receber apoio externo francês e belga, como em outras ocasiões. Mas este apoio só chegou em escala simbólica e, sem a esperada intervenção dos antigos protetores, seu exército e regime entraram em colapso, com os rebeldes assumindo o poder em maio de 1997. Além disso, a atitude norte-americana foi radicalmente diferente de ocasiões anteriores, quando a ordem neocolonial estivera ameaçada, e a intervenção franco-belga fora sempre bem-vinda. Mais do que considerar a atitude de Washington parte de uma questão localizada, é preciso refletir sobre a grande estratégia da Casa Branca para a África, no quadro da competição com a União Européia, e do reordenamento mundial.
Durante a Guerra Fria a África fora uma área de influência predominantemente européia, com a França exercendo o papel de gendarme. Com a solução negociada dos conflitos regionais na passagem dos anos 80 aos 90, ironicamente os antigos Estados marxistas africanos, anteriormente aliados da URSS e inimigos da França, voltaram-se para os EUA, que abriram um espaço de influência direta no continente. Esta atitude revelava a profundidade das rivalidades regionais, entre os regimes marxistas e os pró-franceses. Apesar do fracasso na Somália, Washington passou a exercer influência direta sobre a Etiópia, Eritréia, Uganda, Angola e Moçambique, além da presença prévia no Quênia. Como resultado do conflito tutsis x hutus, essa projeção estendeu-se à Ruanda, Burundi e ao leste do Zaire, em detrimento da influência francesa.

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