terça-feira, 28 de outubro de 2008



A construção dos Estados nacionais africanos


As relações internacionais dos países africanos representam uma enorme lacuna bibliográfica para o público brasileiro. Tenho recebido inúmeros pedidos para escrever sobre o tema, que consta entre as prioridades da política externa brasileira e conhece uma acelerada evolução atualmente. Numa seqüência de quatro artigos, analisarei a evolução diplomática dos países da África, desde o fim da Guerra Fria até a atualidade, que constitui o período de maior interesse e mais difícil de se encontrar em português. Inicialmente é necessário considerar que o continente africano se tornou plenamente independente apenas recentemente (desde os anos 60), sendo constituído por nações jovens, instáveis e ainda não consolidadas.
É importante descartar a visão segundo a qual a África é um continente voltado ao passado, num contexto de conflitos insolúveis, e mesmo irracionais do ponto de vista ocidental. As sociedades africanas estão passando por um processo semelhante ao atravessado por outras regiões do mundo, qual seja, a construção dos modernos Estados nacionais. Muito do que os europeus consideram absurdo na África, constitui apenas a imagem contemporânea de processos semelhantes aos de seu próprio passado nem tão remoto.
Quem se sente chocado pelas guerras de perfil étnico-tribal, simplesmente esqueceu os sangrentos conflitos religiosos e proto-nacionais das monarquias dinásticas européias, a construção pela força dos Estados nacionais europeus, que esmagaram os regionalismos (alguns dos quais continuam a fazê-lo ainda no início do século XXI) ou a expansão dos colonizadores americanos, que exterminaram as comunidades indígenas. Esta semelhança, contudo, é ainda agravada pela herança do tráfico de escravos e o colonialismo imperialista, pois, segundo o líder nacionalista africano Amílcar Cabral, "o colonialismo pode ser designado como a paralisação ou a distorção, ou mesmo como o termo, da história de um povo, e fator da aceleração do desenvolvimento histórico de outros povos".





Descolonização e independência dos países africanos


O brevíssimo período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial caracterizou-se, em primeiro lugar, por uma descolonização peculiar e tardia. A peculiaridade reside no fato da emancipação haver transcorrido largamente administrada pelas metrópoles européias, apesar da eclosão de alguns conflitos graves. Isto foi possível e se deu de forma tardia, devido ao descompasso da realidade africana em relação à da Ásia e do Oriente Médio. As contradições internas ainda não estavam suficientemente amadurecidas, em decorrência da referida herança do tráfico e do colonialismo imperialistas sobre as estruturas sociais do continente, bem como pela posição particular das metrópoles européias e de suas colônias africanas nas relações internacionais do imediato pós-Guerra e durante a Guerra Fria.
Após as malogradas tentativas de reafirmação colonial na Indochina e na Indonésia, e sobretudo devido à crise de Suez, ao desafio do nasserismo e à guerra da Argélia, as metrópoles trataram de emancipar politicamente o continente, cooptando as elites locais. Isto foi logrado com relativo sucesso, através da implantação de regimes neocoloniais, nos quais os interesses europeus eram conservados. Além disso, criaram-se mecanismos internacionais destinados a perpetuar esta situação, como as "ajudas" das ex-metrópoles.
Em meio a uma extrema fragilidade, iniciou-se o processo de construção do Estado-nação, como foi referido. Contudo, é necessário frisar que este movimento histórico foi distorcido pela permanência das estruturas coloniais, através do neocolonialismo e, geralmente, da implantação de Estados inviáveis, política e economicamente. Por outro lado, é forçoso reconhecer que se trata de um processo recente, de apenas algumas décadas, que equivalem à vida de uma pessoa de meia idade. Ou seja, encontra-se ainda em suas fases iniciais. A retomada da História da África pelos africanos, recém atravessa uma etapa comparável à Europa dos séculos XVI e XVII, ou as Américas do século XIX, mas num mundo com os problemas ainda mais complexos do final do século XX.
Apesar da afirmação do neocolonialismo na África, o continente dividiu-se entre uma corrente de Estados conservadores e outra de progressistas, no plano interno e externo, com projetos político-econômicos e alianças internacionais antagônicos. Esta rivalidade, entretanto, foi mantida dentro de certos limites - devido aos interesses comuns de consolidação nacional, articulação de relações inter-africanas - nos padrões da OUA, e afirmação de uma certa margem de manobra internacional pelos novos países, dentro das estreitas margens possibilitados pela ascendência européia sobre o continente.
Contudo, este equilíbrio foi rompido pela permanência dos "bastiões brancos" na África Austral, que propiciaram o desenvolvimento de uma luta de libertação nacional mais radical. Os primeiros colapsos destes regimes, na conjuntura particular de meados dos anos 70, gerou conflitos intensos e internacionalizados, nos marcos da confrontação Leste-Oeste. A confrontação militar que se seguiu, somada aos desastrosos efeitos sócio-econômicos da "década perdida", produziram a implosão dos Estados e das sociedades africanas.

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