terça-feira, 28 de outubro de 2008



A construção dos Estados nacionais africanos


As relações internacionais dos países africanos representam uma enorme lacuna bibliográfica para o público brasileiro. Tenho recebido inúmeros pedidos para escrever sobre o tema, que consta entre as prioridades da política externa brasileira e conhece uma acelerada evolução atualmente. Numa seqüência de quatro artigos, analisarei a evolução diplomática dos países da África, desde o fim da Guerra Fria até a atualidade, que constitui o período de maior interesse e mais difícil de se encontrar em português. Inicialmente é necessário considerar que o continente africano se tornou plenamente independente apenas recentemente (desde os anos 60), sendo constituído por nações jovens, instáveis e ainda não consolidadas.
É importante descartar a visão segundo a qual a África é um continente voltado ao passado, num contexto de conflitos insolúveis, e mesmo irracionais do ponto de vista ocidental. As sociedades africanas estão passando por um processo semelhante ao atravessado por outras regiões do mundo, qual seja, a construção dos modernos Estados nacionais. Muito do que os europeus consideram absurdo na África, constitui apenas a imagem contemporânea de processos semelhantes aos de seu próprio passado nem tão remoto.
Quem se sente chocado pelas guerras de perfil étnico-tribal, simplesmente esqueceu os sangrentos conflitos religiosos e proto-nacionais das monarquias dinásticas européias, a construção pela força dos Estados nacionais europeus, que esmagaram os regionalismos (alguns dos quais continuam a fazê-lo ainda no início do século XXI) ou a expansão dos colonizadores americanos, que exterminaram as comunidades indígenas. Esta semelhança, contudo, é ainda agravada pela herança do tráfico de escravos e o colonialismo imperialista, pois, segundo o líder nacionalista africano Amílcar Cabral, "o colonialismo pode ser designado como a paralisação ou a distorção, ou mesmo como o termo, da história de um povo, e fator da aceleração do desenvolvimento histórico de outros povos".





Descolonização e independência dos países africanos


O brevíssimo período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial caracterizou-se, em primeiro lugar, por uma descolonização peculiar e tardia. A peculiaridade reside no fato da emancipação haver transcorrido largamente administrada pelas metrópoles européias, apesar da eclosão de alguns conflitos graves. Isto foi possível e se deu de forma tardia, devido ao descompasso da realidade africana em relação à da Ásia e do Oriente Médio. As contradições internas ainda não estavam suficientemente amadurecidas, em decorrência da referida herança do tráfico e do colonialismo imperialistas sobre as estruturas sociais do continente, bem como pela posição particular das metrópoles européias e de suas colônias africanas nas relações internacionais do imediato pós-Guerra e durante a Guerra Fria.
Após as malogradas tentativas de reafirmação colonial na Indochina e na Indonésia, e sobretudo devido à crise de Suez, ao desafio do nasserismo e à guerra da Argélia, as metrópoles trataram de emancipar politicamente o continente, cooptando as elites locais. Isto foi logrado com relativo sucesso, através da implantação de regimes neocoloniais, nos quais os interesses europeus eram conservados. Além disso, criaram-se mecanismos internacionais destinados a perpetuar esta situação, como as "ajudas" das ex-metrópoles.
Em meio a uma extrema fragilidade, iniciou-se o processo de construção do Estado-nação, como foi referido. Contudo, é necessário frisar que este movimento histórico foi distorcido pela permanência das estruturas coloniais, através do neocolonialismo e, geralmente, da implantação de Estados inviáveis, política e economicamente. Por outro lado, é forçoso reconhecer que se trata de um processo recente, de apenas algumas décadas, que equivalem à vida de uma pessoa de meia idade. Ou seja, encontra-se ainda em suas fases iniciais. A retomada da História da África pelos africanos, recém atravessa uma etapa comparável à Europa dos séculos XVI e XVII, ou as Américas do século XIX, mas num mundo com os problemas ainda mais complexos do final do século XX.
Apesar da afirmação do neocolonialismo na África, o continente dividiu-se entre uma corrente de Estados conservadores e outra de progressistas, no plano interno e externo, com projetos político-econômicos e alianças internacionais antagônicos. Esta rivalidade, entretanto, foi mantida dentro de certos limites - devido aos interesses comuns de consolidação nacional, articulação de relações inter-africanas - nos padrões da OUA, e afirmação de uma certa margem de manobra internacional pelos novos países, dentro das estreitas margens possibilitados pela ascendência européia sobre o continente.
Contudo, este equilíbrio foi rompido pela permanência dos "bastiões brancos" na África Austral, que propiciaram o desenvolvimento de uma luta de libertação nacional mais radical. Os primeiros colapsos destes regimes, na conjuntura particular de meados dos anos 70, gerou conflitos intensos e internacionalizados, nos marcos da confrontação Leste-Oeste. A confrontação militar que se seguiu, somada aos desastrosos efeitos sócio-econômicos da "década perdida", produziram a implosão dos Estados e das sociedades africanas.

O fim da Guerra Fria e a negociação dos conflitos

Nos anos 70-80 houve conflitos violentos no continente africano (especialmente na África Austral e no Chifre da África), com o envolvimento das grandes potências e, ao final, ajustes econômicos promovidos pelo FMI, que causaram grandes danos à região. Na segunda metade dos anos 80, as conseqüências dos conflitos africanos, da Nova Guerra Fria e da reestruturação da economia mundial continuavam a agravar-se. A União Soviética e os regimes revolucionários do continente, seus aliados, encontravam-se numa posição cada vez mais difícil. Assim, quando o reformista Gorbachov chegou ao poder em 1985, procurou buscar um entendimento com os EUA, como forma de aliviar as tensões diplomáticas e deter a corrida armamentista e a corrosão econômica da própria URSS.
Contudo, é necessário destacar que o problema maior, apesar do impasse militar vigente nos conflitos regionais, encontrava-se, sobretudo, na posição estratégica da URSS. Se a Etiópia era incapaz de derrotar as guerrilhas eritréias e outras, estas também não tinham condições de derrubar o regime, tal como ocorria em Angola, Moçambique e no Afeganistão. Num primeiro momento, os EUA rejeitaram as propostas de negociação soviéticas. Contudo, com a explosão da nave Challenger em fins de 1986 (que inviabilizou, no médio prazo, o projeto guerra nas estrelas), e as crescentes dificuldades financeiras e econômicas dos próprios Estados Unidos (crise das bolsas de valores em outubro de 1987), Reagan foi obrigado a negociar.
Em troca da redução da corrida armamentista e da retomada do processo de desarmamento nuclear, a URSS passou, em fins de 1987, a pressionar seus aliados regionais a buscar uma acomodação política, enquanto iniciava a redução da ajuda militar e econômica a estes. Esta inflexão, entretanto, encontrou resistência por parte dos aliados africanos e de Cuba. No Chifre da África, o regime etíope ficou na defensiva, mas permaneceu intransigente. Já na África do Sul, a situação foi mais complexa. Em 1988 as tropas cubano-angolanas derrotaram de forma esmagadora forças regulares sul-africanas e da UNITA em Cuito-Cuinavale no sul de Angola, e a aviação cubana atacou a represa que fornecia energia ao norte da Namíbia. Ficava patente para a própria África do Sul, extremamente desgastada pela guerra, que era hora de negociar. Os americanos propunham o princípio do Linkage: a retirada cubana em troca da independência da Namíbia, que Pretória acabou aceitando, ainda que procurando ganhar tempo.
Em 1989 os cubanos retiraram-se de Angola (e do resto da África), no mesmo ano em que o muro de Berlim era aberto, iniciando-se o difícil processo eleitoral na Namíbia, sob os auspícios da ONU. Depois de estabelecer-se prerrogativas especiais para a minoria branca e para o capital internacional, ocorreram eleições que foram vencidas pela SWAPO. Em março de 1990 a Namíbia tornou-se independente. Ao mesmo tempo os ventos democratizantes, associados ao reordenamento mundial, varriam a África. Regimes de partido único eram substituídos, frente à pressões internas e externas, por sistemas liberal-democráticos multipartidários, Estados em guerra civil como Angola (maio de 1991) e Moçambique (outubro de 1992) assinavam acordos de Paz e os demais regimes marxistas eram derrubados, como na Etiópia em maio de 1991. A própria África do Sul anunciou, em fevereiro do mesmo ano, o fim do Apartheid, após a libertação do líder negro Nelson Mandela no ano anterior.

Persistência e "tribalização" dos conflitos africanos

A adequação da África aos parâmetros da chamada “nova ordem mundial”, contudo, não significava a solução dos problemas existentes. O fim da bipolaridade e do próprio conflito Leste-Oeste, agravado pelo desmembramento e desaparecimento da União Soviética em fins de 1991, fizeram com que o continente africano perdesse sua importância estratégia e capacidade de barganha, ao que se acrescentava a própria perda de importância econômica. A Guerra do Golfo, por sua vez, reforçara esta tendência. O resultado foi a marginalização da África no sistema internacional, e a desestrategização e tribalização dos conflitos e da política regional. Com armas menos modernas, financiamento das máfias e senhores da droga (cujo cultivo se expandia rapidamente em muitas regiões do continente), e intromissão de potências médias locais e externas, estes conflitos persistiram, até como forma de sobrevivência de elites e populações nas áreas mais afetadas. Alguns acordos de paz, como os de Angola, não foram respeitados, com a persistência da guerra e a devastação de amplas regiões.
No Chifre da África, tal evolução e suas contradições ficaram bastante evidentes. Pressionado por guerrilhas de base clânica, Siad Barre foi derrubado na Somália em fevereiro de 1991, cujo território foi dividido entre quatorze Senhores da Guerra, que lutavam entre si, enquanto a fome se alastrava pelo país. Em maio do mesmo ano, Mengistu Haile Marian fugia da Etiópia, depois que as guerrilhas regionais do Tigre e da Eritréia unificaram suas forças e avançaram sobre a capital. Curiosamente, ambos movimentos eram marxistas-leninistas de linha albanesa, e chegaram ao poder com o apoio dos EUA, após se converterem ao liberalismo político e econômico. Em maio de 1993, através de um plebiscito, a Eritréia tornou-se independente, com dois regimes “irmãos” nos respectivos governos. Isto não impediu que em maio de 1998 ambos entrassem em guerra, apesar de serem igualmente aliados dos Estados Unidos.
Já a Somália, foi palco de uma intervenção militar da ONU em setembro de 1992, majoritariamente composta por norte-americanos, com fins proclamados de distribuir ajuda humanitária. As facções somalis, especialmente a liderada por Mohamed Aidid, ofereceram uma resistência inesperada, causando muitas baixas aos ocupantes, que em março de 1994 começaram a retirar-se do país, devido aos elevados custos da operação. Este país que, quinze anos antes havia tentado criar uma Grande Somália, agora estava fragmentado em clãs armados, tornando-se um conflito tribalizado. Por outro lado, o chefe de um desses bandos, conseguira forçar a retirada de uma grande potência, mostrando a perda de importância estratégica da região. O Sudão, por sua vez, desde o golpe militar de 1989 tornou-se um Estado apoiado em leis islâmicas, praticamente proscrito da comunidade internacional pelos EUA e seus aliados regionais, prosseguindo até o presente a luta contra os rebeldes negros cristianizados e animistas do sul, estes apoiados pelo Ocidente e seus aliados regionais.

Os conflitos do Magreb e da África Ocidental

O fundamentalismo islâmico, por sua vez, fez avanços significativos no norte da África, com atentados no Egito, Líbia, Marrocos e, principalmente, na Argélia. Neste país, desde 1991 a Frente Islâmica de Salvação (FIS) tornou-se um partido influente e, face à sua vitória no primeiro turno das eleições em 1992, o processo foi suspenso e implantada a lei marcial, regida pelos militares. Iniciou-se então uma guerra civil esporádica, com grande número de atentados e massacres de civis. Contudo, é preciso ter em conta que muitos desses atos são cometidos pelas forças governamentais, com o objetivo de atemorizar a população, atribuindo a culpa à FIS e outras organizações fundamentalistas, como constatou uma missão parlamentar da União Européia em 1998. Por outro lado, há evidências de que os EUA mantêm certos contatos com as oposições islâmicas, enquanto a França apóia o regime, o que, muito provavelmente, encontra sentido na disputa pelo petróleo e pela influência estratégica na região entre Washington e Paris. É necessário lembrar que em 1989 foi lançada a iniciativa da União do Magreb Árabe, um processo integrativo entre os países da região, o qual prevê vínculos associativos com a União Européia.
A instabilidade no continente também afetou os Estados do Golfo da Guiné. O mais importante país da região, a Nigéria, vive desde o início dos anos 90 uma turbulência política interna permanente, com a oscilação entre avanços eleitorais da oposição e novos golpes militares. Além disso, as guerras civis alastraram-se pela região: Senegal (região de Casamance), Libéria, Serra Leoa e a longa guerra dos Estados do Sahel (Mali, Niger, Mauritânia e a própria Argélia) contra os nômades tuaregues do deserto. Embora a OUA tenha criado forças de paz para barrar os conflitos da Libéria e Serra Leoa, ainda não conseguiu debelar estes conflitos. Nestes, a fratura principal ocorre entre os nativos do interior e os descendentes ocidentalizados de ex-escravos das Américas, que retornaram à África no século XIX, e habitam o litoral. Acrescente-se a isso que, após uma breve redemocratização, muitos regimes autoritários estão voltando ao poder na África, ou pelo menos antigos ditadores vencem eleições ou reassumem na esteira de conflitos internos, geralmente com apoio popular.

A diplomacia da nova África do Sul

Apesar destes problemas, existem alguns processos positivos que sinalizam o reafirmação da África na cena internacional. É o caso da África Austral, outra região considerada estratégica para a "nova ordem mundial", devido a suas reservas minerais e sua importante posição geopolítica. Tanto aqui como no Oriente Médio, os conflitos regionais conduziam à radicalização social, à instabilidade diplomática e aos excessivos gastos em defesa e segurança, os quais foram consumindo as riquezas locais, obrigando o Ocidente à auxiliá-las economicamente. O Apartheid começou a ser desativado pelo presidente Frederik De Klerk, num tortuoso processo que culminou com a eleição de Mandela à presidência do país em 1994. Este caminho foi difícil, com inúmeros conflitos internos, o que também veio a ocorrer com os processos de paz em Angola e Moçambique, só concluídos após a vitória do Congresso Nacional Africano na África do Sul. Apesar da situação ainda não haver sido resolvida em Angola, a queda de Mobutu no Zaire deixou a UNITA ainda mais isolada.
Embora a situação interna sul-africana seja difícil, especialmente quanto aos problemas sociais que afetam a maioria negra, começa a esboçar-se uma área de integração na África Austral, em torno da nova África do Sul. O processo de paz traz implícita a integração econômica da região, permitindo virtualmente uma maior estabilidade social e diplomática, bem como uma inserção internacional menos onerosa desta área no movimento de globalização econômica em curso. Paralelamente, a nova diplomacia sul-africana abriu possibilidades de mudança na política regional, pois a África do Sul ingressou na OUA e no Movimento dos Não Alinhados, cortou relações com Taiwan e as estabeleceu com a República Popular da China, e tem buscado romper o isolamento estabelecido pelos EUA em relação à Líbia, Nigéria, Sudão e Cuba. Além disso, o estabelecimento em 1993, por iniciativa brasileira, da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, cria possibilidades de cooperação sistemática entre a África Austral e os países do Mercosul, recriando certa margem de manobra internacional.

O genocídio na região dos lagos africanos e o fim do Zaire

Outro processo que representa uma renovação e desentrave da política africana, resultou da guerra civil de mútuo extermínio em Ruanda e Burundi. Este conflito foi mostrado pela mídia como uma decorrência do "tribalismo tradicional", mas na realidade resultou da deformação e reapropriação moderna de determinadas fraturas sociais da região. Os agricultores hutus formam quase 90% da população, enquanto os pastores tutsi, que chegaram mais tarde à região e constituíram uma aristocracia feudal, representam 10%. Durante a ocupação alemã e belga nessas duas colônias, os tutsis foram cooptados como elite no poder. Após a independência, o regime neocolonial de Ruanda passou a ser dominado pelos hutus, e aliou-se incondicionalmente à França e ao Zaire. A hegemonia hutu, marcada por forte corrupção e exclusão estrutural dos adversários, começou a ser questionada no início da década. Refugiados tutsi, exilados há anos em Uganda, organizaram um pequeno exército (a Frente Patriótica Ruandesa - FPR), que penetrou no norte de Ruanda em outubro de 1990, sendo expulsos um mês depois pelo exército. Sentindo-se desgastado e ameaçado internamente, o governo massacrou tutsis em 1991 e 1992, como meio de fomentar uma divisão étnica, com vistas a permanecer no poder.
Apesar da assinatura dos Acordos de Arusha entre o governo e a oposição, a guerra civil reiniciou-se, com os rebeldes consolidando seu controle no norte e massacrando populações hutus. Frente ao impasse reinante no campo de batalha, no verão de 1993 foi estabelecido um governo de coalizão. Mas a paz estabelecida era frágil, e bastou que um hutu vencesse as eleições na vizinha Burundi, para levar os tutsis deste país a reagir. Em Ruanda, então, os extremistas hutus, ligados ao ex-presidente, aproveitaram-se da situação para atacar os tutsis e os hutus moderados. A crise agravou-se com a morte dos presidentes dos dois países, quando foi derrubado sobre Ruanda o avião que os transportava para uma reunião, destinada a resolver a crise. A partir daí a guerra civil acirrou-se, e a FPR conquistou Kigali, a capital de Ruanda. Em 1994 teve início então um gigantesco massacre de hutus, que fez entre 500 e 800 mil mortos, e produziu um êxodo de 4 milhões de refugiados (numa população de 7,8 milhões), a maioria em direção aos países vizinhos, principalmente o fragilizado Zaire, que junto com a França era aliado do antigo governo. Os Estados Unidos imediatamente reconheceram o novo governo da FPR, que era também aliado de Uganda e Tanzânia.
O problema dos refugiados gerou tensões no Zaire, país que já enfrentava graves problemas internos, após malogradas tentativas de democratização. Em 1996 formou-se na região dos lagos, no leste, a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire, uma milícia composta principalmente por tutsis do Zaire. A Aliança era liderada por Laurent Kabila, um negociante de ouro e marfim, associado a meios empresariais norte-americanos, e que fora partidário de Lumumba no início dos anos 60. Em menos de quatro meses, os rebeldes avançaram pelas províncias ricas do país até a capital, Kinshasa, sendo absorvidos por um vácuo, praticamente sem encontrar resistência.
Obviamente o Zaire de Mobutu era um gigante de pés de barro em desagregação, mas isto não era um fenômeno recente. Ele teria sobrevivido mais tempo, não fossem certos fatores externos. Os conflitos da região dos lagos instauraram uma nova correlação de forças na região, e as forças de Kabila puderam receber apoio material e político dos governos de Ruanda e Uganda, e quando atingiram o sul do Zaire, também de Angola (que aproveitou a oportunidade para vingar-se de Mobutu e enfraquecer a UNITA). Forças regulares, unidades blindadas e aéreas destes países apoiaram diretamente os rebeldes nas operações militares.
Durante o avanço rebelde, enquanto parte da mídia destacava o passado "marxista-leninista" de Kabila, Mobutu esperava receber apoio externo francês e belga, como em outras ocasiões. Mas este apoio só chegou em escala simbólica e, sem a esperada intervenção dos antigos protetores, seu exército e regime entraram em colapso, com os rebeldes assumindo o poder em maio de 1997. Além disso, a atitude norte-americana foi radicalmente diferente de ocasiões anteriores, quando a ordem neocolonial estivera ameaçada, e a intervenção franco-belga fora sempre bem-vinda. Mais do que considerar a atitude de Washington parte de uma questão localizada, é preciso refletir sobre a grande estratégia da Casa Branca para a África, no quadro da competição com a União Européia, e do reordenamento mundial.
Durante a Guerra Fria a África fora uma área de influência predominantemente européia, com a França exercendo o papel de gendarme. Com a solução negociada dos conflitos regionais na passagem dos anos 80 aos 90, ironicamente os antigos Estados marxistas africanos, anteriormente aliados da URSS e inimigos da França, voltaram-se para os EUA, que abriram um espaço de influência direta no continente. Esta atitude revelava a profundidade das rivalidades regionais, entre os regimes marxistas e os pró-franceses. Apesar do fracasso na Somália, Washington passou a exercer influência direta sobre a Etiópia, Eritréia, Uganda, Angola e Moçambique, além da presença prévia no Quênia. Como resultado do conflito tutsis x hutus, essa projeção estendeu-se à Ruanda, Burundi e ao leste do Zaire, em detrimento da influência francesa.

A África nas Relações Internacionais


A reafirmação da África no sistema mundial

As tendências de reafirmação da África no sistema mundial, que se esboçaram na segunda metade dos anos 90, se aprofundaram na passagem do século. Apesar disso, os conflitos étnico-tribais e guerras civis se mantiveram, muitas vezes atingindo níveis de extremos de violência. Esta situação foi mais comum especialmente nos Estados do Golfo da Guiné e da África Ocidental. Este foi o caso da Guiné-Bissau, cuja tentativa de golpe militar em 1998 transformou-se em guerra civil. Na Libéria, os conflitos entre as populações do interior e as mais ocidentalizadas do litoral prosseguiram de forma intermitente e na Serra Leoa, em 1999, o mesmo problema começou a se manifestar com intensidade. As populações do litoral, em grande parte descendentes de ex-escravos retornados das Américas, constituem a elite dirigente, discriminando os nativos. Alguns grupos políticos ou tribos, por outro lado, são financiados pelas grandes companhias de diamantes (particularmente as localizadas em Antuerpia) e outras pedras preciosas, com o objetivo de manter o controle das zonas de mineração, devido ao literal colapso do Estado e a desordem reinante.
Tudo isto agrava as tensões locais e propicia uma espécie de "privatização" da política e da violência armada, em meio a todo o tipo de tráfico, particularmente o de drogas, que tem crescido na África. A Nigéria, por sua vez, é conhecida por possuir uma poderosa máfia de narcotráfico, que já atua em todo o mundo. O fim do regime autoritário neste populoso país africano, por seu turno, não trouxe a esperada estabilidade, muito pelo contrário. Outro país atingido por uma guerra civil, foi a Costa do Marfim, onde os rebeldes apoderaram-se da metade norte do país em 2003, em sua luta contra o governo, tendo sido necessário uma intervenção francesa em apoio do mesmo. Ja as ilhas Comores, independentes desde 1975, teve seu décimo-oitavo golpe de Estado em 28 anos de independência, o que vem reforçar a noção de instabilidade do continente.
Por outro lado, o processo de implantação de numerosas democracias após a queda do Muro de Berlim, impulsionadas de fora para dentro através daquilo que Samuel Huntigton denominou de "Terceira Onda" (a das democracias), parece estar retrocedendo. Antigos lideres de regimes autoritários de esquerda comecaram a voltar ao poder. Com a guerra civil de 1997-1998, Denis Sassou Nguesso voltou ao poder na República Popular do Congo, com apoio da empresa petrolífera francesa Elf-Aquitanie, numa clara tentativa de rechacar os interesses norte-americanos defendidos pelos regimes "democratizados".
Mas o caso mais impactante, foi o do Zimbabwe, onde em outubro de 2001 o presidente Robert Mugabe anunciou que o país abandonava a economia liberal de mercado, para adotar um padrao "socialista". Em 2002 ele apoiou as invasões de fazendas (pertencentes aos brancos) pelos antigos guerrilheiros, nos meses que antecederam as eleições, marcadas por violência, cerceamento da mídia ligada a oposição e pela presença de observadores estrangeiros. Enquanto os EUA e a Inglaterra ameaçavam o presidente que estava no poder desde 1980 e a Commonwealth suspendia o país da organização, ele venceu as eleições. Sem se intimidar, e com o respaldo de outros países africanos, especialmente da África do Sul, ele prosseguiu sua política e realizou uma ampla reforma agrária, enquanto era boicotado pelos países ocidentais.
Em fevereiro de 2000, por sua vez, um novo conflito armado ocorreu entre a Etiópia e a Eritréia. Embora o pretexto para o conflito tenha sido os litigios fronteiricos, a verdadeira razão foi o abandono unilateral pela Eritreia da União Monetária existente entre os dois países e o crescente alinhamento desta com os EUA. Posteriormente foi estabelecida uma trégua, o que também aconteceu em relação a outros conflitos. Na Somália, em outubro de 2002, as quatorze faccões assinaram um acordo de cessar-fogo, o que igualmente ocorreu entre o governo de Burundi e os rebeldes hutus. Já no Saara ocidental o Marrocos, que ocupa o país desde 1975, tem manobrado para não realizar o plebiscito sobre a independência, em atendimento a resolução da ONU. Mas o caso mais espetacular foi o fim da longa guerra civil em Angola, após a morte em combate do líder da UNITA, Jonas Savimbi, ocorrido em fevereiro de 2002. Savimbi controlava as minas de diamante do interior e devastava o país, enquanto o governo retirava seu rendimento do petróleo do litoral.
Um cessar-fogo também foi acertado na república Democrática do Congo, com a retirada das tropas de Ruanda e Uganda (que chegaram a controlar metade deste gigantesco país), e do desarmamento da maior parte dos rebeldes, embora alguns focos de conflito ainda persistam. Kabila chegou a ser assassinado no desencadeamento da guerra, sendo substituído por seu filho na presidência, e o regime resistiu devido ao apoio político-militar de Angola, Namibia, Zimbabwe e África do Sul. Este último país, por sua vez, tem emergido como a nova liderança africana, apoiando países aliados, promovendo mediações de conflitos e participando em forças de paz no continente, além de haver intervido no Lesoto em setembro de 1998, para salvar o governo que se encontrava ameaçado. Além disso, a nova África do Sul tem atuado na diplomacia mundial de forma crítica a neohegemonia americana, defendendo a construção de um mundo multipolar.